É PRECISO DAR VOZ À NOSSA ANCESTRALIDADE!
Nesses dias de recolhimento obrigatório tem me vindo à mente as
vozes das avós, bisavós e de toda uma ancestralidade de mulheres fortes, guerreiras,
desbravadoras que viveram em tempos idos, dias de profunda agonia ante a
maneira vil como eram tratadas em um mundo de supremacia masculina. O pior é
que tudo parecia tão encaixado, que até as injustiças pareciam justas. Afinal,
eram apenas mulheres! Quem se importava? Parece que tudo era do jeito que tinha
que ser. Será mesmo? Lembro-me da minha avó paterna. Sertaneja, extremamente
batalhadora. Mulher, que apesar de analfabeta se fazia ouvir em um tempo em que
as mulheres não tinham voz nem vez. Diante das agruras da seca que castigava
aquelas paragens dos cafundós da Paraíba, ela bradava: “Não há nada pior que
parir na seca”! Ela era revoltada com casamento e dizia: “É muito sofrimento e
só a mulher é quem sofre”! A minha avó materna não ficava atrás. Foram
dezesseis filhos nascidos de tempo como se costumava dizer e quatorze criados
no meio de muita dificuldade. Dor, Sofrimento, Amargura. Era o mote de ambas!
Filhos naqueles dias eram feitos aos borbotões sem que elas
tivessem direito a recusa! Muitas vezes os “resguardos” nem se completavam.
Eram quebrados e as mulheres logo já estavam grávidas de novo. Emendava-se uma gravidez na outra. Elas não
podiam dizer: Não! Maridos que chegavam dos roçados, como brutos sem razão e
nunca se davam por satisfeitos. A sensibilidade era zero, o que valia era o
instinto! Essas mulheres tinham que “servi-los”! E haja geração e mais geração
de filhos da necessidade ou herdeiros das agonias. Seca, chão esturricado pela
estiagem, gado miúdo que só tinha pele e osso, água escassa ou nenhuma. Muitas
vezes o que se tinha pra comer era um punhado de farinha seca para dividir pra
muitos. Minha avó aprendeu a fazer milagres dando de comer a todos ficando ela
por último. Quantos anjos enterrados, meu Deus! Não sobreviveram aos peitos
secos de suas mães e também dos animais. Já nasciam fadados a morrerem
prematuramente. Esses eram mais felizes, pois se livraram das agruras da vida!
Quase posso ouvir a voz de lamento da minha avó, nascida Maria de Deus, como
tantas outras “Marias” naqueles rincões. Todas com a mesma sorte ou falta dela.
No seu dizer experiencial ela costumava vaticinar: “Parir é o derradeiro ramo
de vida”! E ainda: “Não aguento mais ver filho morrer”! As dores da alma podiam
ser vistas no olhar da minha avó e de outras tantas “Marias”. Hoje cabe a nós
filhas, netas, bisnetas, tetranetas dar voz à nossa ancestralidade de mulheres
sofridas e quase invisíveis. Os ecos das vozes daquelas mulheres valorosas
clamam para serem ouvidos e cabe a nos dar voz a todas elas. Que suas vozes
reverberem!
Não, não falo de um feminismo que tem feito as mulheres irem para
os extremos dessa cadeia de desmandos e desigualdades. Ninguém é superior a
ninguém! Não há supremacia entre seres humanos criados à imagem e semelhança de
Deus! Todo extremo é prejudicial. Falo da urgência da valorização, da igualdade
de direitos e de oportunidades, de uma humanização das relações, de vida digna,
de oportunidades igualitárias de trabalho. Somos todos humanos ou o quê? Quanto
feminicídio! Quanta agressão! Quanta violência! Precisamos nos firmar,
sobretudo, pela inteligência e pela coerência. Homens e mulheres foram criados
para andar lado a lado. Ninguém é dono de ninguém, não nesta terra! Não se pode
tratar seres humanos como se fossem coisas! Hora de nos levantar resgatando
talentos adormecidos dando voz e vez à toda nossa ancestralidade que anseia por
ser ouvida! Nadia Malta
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